E daí, EAD? Apontamentos para não se dar mal na escola durante e após a emergência do Coronavírus[1]

 

[Parágrafo introdutório dos tradutores]

Optamos pela tradução e difusão deste texto por notarmos que os problemas enfrentados pelos italianos alertam para os riscos futuros mas também descrevem situações já vivenciadas pelos brasileiros (professores, pais e estudantes), que têm sentido cotidianamente os impactos da imposição do Ensino à Distância, tanto no ensino público quanto privado, nos diferentes níveis educacionais.

Este texto foi publicado originalmente por um coletivo de professores italianos chamado Rete Bessa[2], constituído por pessoas que trabalham nos campos de ensino e educação. São professores de escola infantil e primária, do ensino fundamental e médio. O coletivo nasceu ao final de 2019 em Bolonha (Itália), na experiência da ocupação de um ex-quartel militar, que ocorreu como resposta ao despejo de um Centro Social chamado XM24. A Rete Bessa, composta por trabalhadoras e trabalhadores precários, tem como objetivo combater as discriminações racistas, sexistas e sociais, a competição e exclusão, a homogeneização cultural e o autoritarismo, tanto no ensino como nas condições de trabalho.

Este texto tem como objetivo enfrentar dificuldades que emergem da experiência concreta e generalizada do Ensino à Distância na Itália, introduzida diante da emergência da pandemia de Coronavírus e do isolamento social. Para isso, o coletivo analisou mensagens postadas em grupos de professores em redes sociais, bem como situações relatadas em reuniões presenciais e virtuais com pais, professores e/ou alunos, tanto no ambiente escolar quanto em espaços de militância política propostos pelo próprio coletivo.

1. Distopia

"Agora, como você sabe, existem restrições, tudo está bloqueado, não há nada que possamos fazer!"

Este ano, fiz apenas substituições intermitentes, alguns meses seguidos no máximo, e muitos dias dispersos. Mas, há três dias, tem restrições. Com o fechamento das escolas, não há mais pedidos para substituições, nem salário, apenas auxílio-desemprego. Mas para consegui-lo é necessário que os contratos sejam recentes, assim como os pagamentos.

Eles estão faltando.

"Você não recebeu o salário de dezembro?"

Quatro meses atrasado, sim. Como acontece com frequência, a muitas e muitos de nós. O salário chegou para cobrir a dívida dos meses anteriores. Mas o que isso tem a ver? A questão é que tenho que pedir o auxílio de desemprego.

"Então, em suma, você é apenas uma MAD!"

MAD, Messe A Disposizione [professores colocados à disposição, NdT], ou seja, docentes que são convocados sob demanda, chamados na medida em que chega o seu lugar na fila. Eles ligam para você porque você deixou seu currículo no lugar certo, na hora certa. Os que são convocados ao trabalho dessa maneira representam o último elo de precariedade na escola. MAD é sinônimo de meses gastos cobrindo doenças e licenças de colegas concursados que, por sua vez, têm a esperança de encontrar um suplente, que planejam as aulas confiando nessa disponibilidade; é sinônimo de uma organização dos funcionários da escola que conscientemente desfruta da disponibilidade constante de professores e professoras precários… Decido tomar a palavra:

"Eu aviso que, se você não me der meus contratos [para assinar], tomarei medidas: sindicatos, advogados, avisos, notificação formal…"

Senhorita ... Se pra você está bem, nos vemos em frente ao Coop[3] [grande supermercado, NdT]? Então você assina os contratos e eu os entrego a você."

E aqui estamos, na parede lateral do supermercado, entre máscaras e luvas, ao lado de uma fila com carrinho.

O Ódio.

Não de colegas que eventualmente não gosto, mas com os quais necessariamente tenho que colaborar, nem daquela parte da equipe da escola que acha que pode me tratar como um trapo fazendo com que eu assine o contrato em frente à Coop.

Meu ódio pulsa contra o sistema escolar, seus não-ditos e suas hierarquias.

A escola está em estado de emergência há mais de vinte anos, com enorme escassez de docentes e pessoal técnico-administrativo, com discursos e reformas de tipo empresarial, e agora o nojento vem à tona. Como na área da saúde, mas isso é outra história... ou talvez não?

Mas vamos deixar de lado as dúvidas: #lascuolanonsiferma[4] (a escola não para), continuou dizendo a ministra Azzolina, enquanto alguém na loteria dos contratos [eventuais] pegou o contrato errado e de fato foi forçado a parar[5]. E a ficar em casa. (duplo sentido: “ficar em casa” pela pandemia e ficar literalmente “sem trabalho”, NdR)

Essas ausências obviamente pesam sobre quem as sofre, mas elas têm o efeito de enfraquecer toda a escola: do restante do pessoal da escola, que tem menos uma pessoa com quem contar, aos estudantes, que tinham construído um relacionamento com essa pessoa que agora é “deixada em casa”. É neste contexto que a emergência que estamos enfrentando se coloca.

Por esse motivo, focamos tanto nas formas de ensino online, nas ferramentas, nas plataformas, que corremos o risco de esquecer as pessoas, corpos materiais que nos permitem construir relacionamentos, sem os quais o ensino é impossível, mesmo quando não é à distância.

Na realidade, o roubo é claro. "Não podemos realizar um milhão de solicitações em papel", disse a ministra, afirmando, para seu grande desagrado, que as listas de espera para convocação não serão atualizadas este ano, ou seja, as listas a partir das quais os professoras e as professoras precárias encontram trabalho na escola. De acordo com o governo, portanto, são necessárias ferramentas tecnológicas para realizar aulas à distância para 8,3 milhões de estudantes todos os dias, com vídeos, slides, imagens, mas, um portal onde você pode receber arquivos PDF é inimaginável.

O Ódio.

2. Fanatismo tecnológico

Sou um professor ingênuo, não sei fazer EAD, ensino a distância (em italiano, DAD didattica a distanza, NdT). Vou no site do Ministério da Educação e vejo o link: "Ensino a distância". Eu clico. Existem dois menus: o primeiro é "Experiências para ensino a distância", o outro "Plataformas".

Três plataformas estão listadas neste segundo ponto: Google, Microsoft, Amazon. Três das entidades privadas mais poderosas do mundo escancaradamente exibidas. Para entender o que isso significa, precisamos dar um passo atrás no raciocínio.

Em seu discurso ao parlamento, a Ministra da Educação destinou um investimento de 85 milhões de euros para possibilitar o ensino a distância em todo o território italiano. Do total, apenas 5 milhões foram dedicados ao treinamento de pessoal. É a única medida econômica prevista pela primeira intervenção da ministra. Explicando: primeiro as ferramentas e depois a garantia econômica de quem até o dia anterior ao fechamento tinha um contrato de trabalho precário. A ideia de a escola não sobrecarregar ainda mais o Estado está inicialmente implícita e depois confirmada no decreto de 6 de abril (artigo 8).

Não há problema: afinal, as plataformas de ensino online sugeridas pelo Estado são gratuitas e o uso, por exemplo, dos serviços do Google já é amplo; de fato, muitos docentes são obrigados a ativar a conta institucional no Gmail quando assumem o posto. Mas agora a aceleração é evidente. Muitos docentes:

1) usaram os chats do celular para entrar em contato com as aulas, em muitos casos usando a conta do Google registrada no dispositivo;

2) usam o Google Meet para realizar atividades como vídeo aulas;

3) usam o Google Classroom para trocar materiais; finalmente,

4) participam de atividades substitutivas para reuniões de pais e alunos, e conselhos de classe, nas plataformas do Google.

Os registros eletrônicos já são gerenciados por entidades privadas e são massivamente usados (porque são obrigatórios desde 2012), mas negligenciar a forte interferência de entidades privadas em uma instituição pública é muito arriscado. E o fato de que isso está acontecendo acriticamente - com raras exceções - produzirá monstros.

O silêncio acrítico que acompanha essa entrada "molecular" do privado na escola pública é alarmante por várias razões. Primeiramente, o fato de que essas plataformas são o local em que muitos institutos tomam decisões colegiadas que teoricamente não são legítimas, mas prontas para se assim se tornarem com base em exceções ou decisões futuras. Desta forma, as plataformas são essenciais hoje para o funcionamento da governance escolar.

Privacidade Hackeada é um documentário sobre o escândalo de Cambridge Analytica. Se concentra sobre o caso Facebook, mas permite refletir sobre o uso dos dados pessoais.

Privacidade Hackeada é um documentário sobre o escândalo da Cambridge Analytica. Ele se concentra no caso do Facebook, mas permite que você reflita sobre o uso de dados pessoais.

Em segundo lugar, há a questão da chamada "privacidade", em respeito a qual as discussões e conteúdo das circulares ministeriais estão vinte anos atrasados. Quase nos dá vontade de perguntar: "Com licença, mas você já ouviu falar da Cambridge Analytica?"

Temos que começar a dizer que pensar a privacidade exclusivamente de um ponto de vista individual agora é muito limitador. O principal problema não é apenas o conteúdo de uma específica mensagem, mas o fato de os fluxos de dados que disponibilizamos revelarem nossos hábitos, gostos e necessidades para aqueles que depois os monetizarão e explorarão para seus próprios interesses.

O problema não é (apenas) que o Big Brother te castiga se você não pensa como ele, mas que ele usa seus dados para entender como ganhar com você. Deste ponto de vista, o Google e a Microsoft estão longe de ser transparentes, tanto que, onde o Google já foi amplamente testado, o debate é bastante acirrado, enquanto em alguns países as ferramentas do Google foram banidas da escola.

«Prof, por que não usamos o (Google) Meet? É mais fácil!"

A questão é enorme, dado que atualmente não existem plataformas livres capazes de garantir serviços igualmente funcionais e eficientes para uma massa tão desproporcional de usuários. No entanto, podemos conduzir algumas formas de resistência que atualmente nenhum Conselho Docente, nenhuma circular, nenhum gestor tem o poder de negar.

Durante a transmissão do Ora di buco na Radio Onda Rossa[6], um professor entrevistado esclareceu muito bem os riscos do uso acrítico de "plataformas tóxicas", sugerindo possíveis alternativas. Além disso, o debate sobre o site Giap, na parte inferior do post sobre degoogling, oferece muitas idéias. Sugerimos algumas delas:

3. Vamos ajudá-los na casa deles (1)[7]

Para atender às e aos alunos mais frágeis, a ministra sugeriu o uso de plataformas no site do MIUR (Ministero dell’Istruzione, Università e Ricerca, Ministério da Educação, Universidade e Pesquisa, NdR), mas, como dissemos, essas plataformas são inúteis sem relações humanas. Além disso, a ministra deu indicações vagas no sentido de não deixar ninguém para trás, mas sem alocar os recursos necessários: o tamanho da equipe de apoio pedagógico às alunas e alunos com dificuldade de aprendizado não aumentou, os cursos de italiano para estrangeiros - talvez com a única exceção dos CPIA (Centri per l’Istruzione degli Adulti, Centros de Educação de Adultos, NdR), onde os cursos L2 têm um peso importante - pararam, educadoras e educadores terceirizados vivem no inferno da relação com sua cooperativa. Aqueles com maiores necessidades, os quais a própria Constituição (artigo 3) reconhece o direito de ser ajudados, são abandonados. Para se safar, tudo deve correr bem.

Uma manhã tragicômica para mim foi aquela em que tentei matricular um aluno com deficiências cognitivas e não italófono na plataforma Google ClassRoom. Para guiá-lo passo a passo na série de ações necessárias para o registro, foram necessários 5 dispositivos: o meu celular se conectava ao celular da mãe para instruções de voz, o celular do menino fazia um vídeo da tela do computador dele para que eu o guiasse passo a passo na execução das tarefas, meu PC verificava se o registro havia ocorrido. Era tudo um "A., coloca o vídeo aí, aperte esse botão, invente uma senha, anote-a em um caderno, não, espere, isso não é bom, espere, você apertou o botão "mudo", não ouço mais nada...»

Essa situação na verdade é uma das melhores: o menino tem a mãe e um professor ao seu lado, que têm a oportunidade de dedicar várias horas a ele. Mas não é preciso muito para que a situação se torne dramaticamente diferente.

O fato é que o problema é muito mais profundo, mesmo neste caso, o sistema no qual estamos montando o ensino à distância já está errado por si só: quando falamos de deficiências/dificuldades de aprendizado e EAD, devemos refletir sobre o fato de que a inclusão não é alcançada apenas com o fornecimento de tablets e PCs (o que também é fundamental), mas com um repensar global da maneira de fazer a escola. Esse tipo de reflexão, na emoção da emergência, ainda não ocorreu, mas é obviamente necessária. Nessas semanas, todo professor de equipe de apoio pedagógico às alunas e alunos com dificuldade de aprendizado está se saindo da melhor maneira possível, procurando canais de comunicação para manter todos dentro com criatividade e dedicação. Boa a criatividade, boa a dedicação, mas sem uma intervenção sistêmica envolvendo famílias, serviços sociais e de saúde, serviços educacionais, a inclusão no EAD não será totalmente acessível e será, pelo contrário, problemática.

O final de The Cube (1997). Ao término de uma aventura claustrofóbica Kazan, o menino com atraso mental, é o único sobrevivente que sai da trampa.

A situação não é melhor para as pessoas que acabam de chegar à Itália (NAI, na neolíngua ministerial), para quem o risco de abandonar a escola é sempre alto.

Um meu estudante NAI - que chegou à Itália do Paquistão no outono - desapareceu. A cooperativa que deveria cuidar dele ainda não foi contactada. Culpa do professor coordenador da turma? Culpa da função instrumental para estudantes estrangeiros? Ou talvez culpa da burocracia escolar? O fato é que algo sobre os NAI deve ser dito: seu processo de integração no passado foi delegado principalmente aos colegas de classe, que não estão mais lá.

Também neste caso os esforços se multiplicam: os professores italianos reinventam-se professores italianos L2 e aumentam sua carga horária, os contatos professor-aluno se multiplicam «para que não se perca as coisas boas feitas». Mas sem imersão no contexto linguístico, a pessoa experimenta uma dificuldade quase intransponível. O ensino a distância torna-se inerentemente excludente. No entanto, é realizado dentro de uma escola que se diz, ainda e apesar de tudo, ser pública.

Novamente, esses casos são os nós não resolvidos da escola. Colocá-los no centro do planejamento didático deve ser o dever de todo professor, especialmente neste momento. Mas acontece que a sociedade em que estamos imersos troveja do outro lado das telas fazendo ouvir suas ideologias.

Famílias com mais possibilidades, acostumadas a computadores e conexões ilimitadas, reivindicam sua frustração e egoísmo. Acontece que pais zelosos atormentam o professor que não usa o Google Classroom e que não avança com o "programa": "Nem sempre podemos nos sacrificar por aqueles que não conseguem".

O medo, mesmo legítimo, dos caminhos educacionais das e dos próprios filhos elimina os freios inibitórios e desencadeia a luta pela sobrevivência. Suas sementes foram espalhadas em um contexto que para muitos foi considerado a "normalidade". Mas criticar o que está acontecendo sem criticar a ideia de "normalidade" é um erro decisivo.

4. Vamos ajudá-los na casa deles (2)

«Eu já comecei com as videoaulas. Eu faço todas, assim, para o terceiro ano eles vão chegar preparados.»

«Mas você verificou se todos tinham um computador?»

S. não tinha um computador. Ela mesma conseguiu um no início de março enquanto o resto da turma estava tendo aula. Mas o computador é antigo e não consegue se conectar. Escrevi para ela que a escola agora os está disponibilizando.

«Sim, sim», ela respondeu.

Ela nunca foi buscá-lo.

Quando a ministra Azzolina interveio no Parlamento, prevendo a alocação de 85 milhões de euros para o ensino a distância - que deixou de ser opcional com o decreto de 6 de abril -, essa forma de ensino já havia sido iniciada em grande parte da Itália sob estímulo dos gestores, da opinião pública em geral ou da volumosa inserção do Sole 24 ore[8] (particularmente interessado na escola, neste período). Em alguns casos, vários professores e professoras, talvez com as melhores intenções, haviam reiniciado o programa, dando uma aparência de continuidade escolar, completamente ilusória. O sistema que surgiu dessa corrida está cheio de falhas, em parte devido ao enorme desequilíbrio na possibilidade de acesso aos recursos.

A Rete Bessa nasce nos espaço da Caserma Sani, um ex cuartel que o Município de Bolonha fez puntualmente despegar. Foto de Michele Lapini.

Não estamos necessariamente pensando em famílias mais pobres. Vamos levantar uma hipótese: uma família de classe média poderia ter dois computadores em casa, um dos quais é para os pais para sua atividade de home office, o outro é disputado por irmão e irmã. Quem terá acesso ao computador? O acesso sempre será possível?

Aula de sábado de manhã.

Prof: «G., você pode repetir? Eu não entendi o que você disse.»

G. (sussurrando): «Com licença, não posso levantar a voz, meu irmão está dormindo ao lado…»

Vivemos constantemente em casa com outras pessoas. Depois de mais de um mês de isolamento, já é um milagre que as pessoas não se apunhalem (o que na verdade acontece, embora as instituições fiquem em silêncio sobre isso). Podemos imaginar como a competição pelo PC deve ser tranquila.

Muitas e muitos estudantes então recorrem ao celular.

«Gente, vocês vêem os slides?»

«Não, professor, ele está travando muito.» [Trecho de uma vídeo aula]

As e os estudantes, assim, encontram-se recebendo explicações, talvez hiper precisas e qualitativamente altas, de um black mirror de oito por quatro centímetros. E o problema não se limita às e aos estudantes: os professores, como se sabe, não são ricos.

Uma colega minha, em 31 de março, alertou no registro que não ia ter aula porque ela ficou sem crédito disponível no celular e, portanto, as lições começaram novamente em abril. [Extrato de uma reunião da Rete Bessa].

5. Emoções e trabalho

Alunos e alunas se conectam desde os seus quartos, ouvem ou participam de aulas, enquanto talvez seus pais, mães, irmãos ou irmãs passam ao redor deles.

Para meninos e meninas da escola primária, esse compartilhamento é obrigatório: sempre deve haver uma pessoa adulta até como proteção contra o uso inadequado do aparelho e da rede. Além de ser separada de sua turma, ou seja, do contexto social em que ela tem a oportunidade de experimentar relações e autonomia, uma menina de oito anos se vê mais dependente do que nunca dos adultos e sempre condicionada pela presença deles para aprender e se comunicar com o mundo.

Harry Potter and the Order of the Phoenix. Quando a professora Umbridge chega a Hogwarts, o ensino da Defesa contra as artes obscuras vira totalmente teórico, centrado nos livros. É o momento de se organizar autonomamente e entender quais são as artes obscuras das quais defendernos.

Esse compartilhamento de espaço privado nem sequer beneficia aqueles que são mais adultos ou adultas, privados dessa, embora relativa, independência, desfrutada pelo adolescente na escola. Só que o corpo docente ainda menos do que antes pode entender o que está se movendo neste mundo.

As novas formas de bullying são muito difíceis de interceptar - «prof, alguém me expulsou da sala de audiências e eu não consigo me conectar» - ou as novas formas de sexismo. Impossível interpretar os novos silêncios que acompanham as aulas. O significado do engajamento nesta forma de ensino está descrito muito bem no blog Cattive Maestre. Para quem ensina, a sala de aula se desmaterializa e se multiplica ao mesmo tempo em um conjunto de células feitas de pixels, através das quais os alunos e as alunas se observam sem interagir. Muitas e muitos não querem ser vistos e desligam suas câmeras.

Um deles, muito tímido, nem sequer fala: para comunicar usa o chat. Em suma, surge um grande problema: o da relação dos adolescentes com sua imagem e sua voz. Trancados em suas celas, os meninos estão mais sozinhos e mais expostos. Eles não intervêm porque não têm a força do grupo, tanto que nem fazem a bagunça que fizeram na aula e da qual agora quase temos saudade.

Nesse contexto, a qualidade do ensino é altamente questionável e nenhum registro bem feito pode garantir que um tópico tenha sido efetivamente realizado, também porque as pessoas se vêem recebendo explicações sem a participação coletiva que sempre acompanha, ajuda, fortalece o crescimento dos indivíduos.

Videoaula. Foto de Michele Lapini.

Isso é ensino? Dado que certamente não podemos responder sim com convicção, não há uma resposta clara. Porque para responder a essa pergunta, seria necessário nos perguntarmos se o de antes era ensino, quando uma turma significava dezenas de problemas diferentes que dificilmente poderiam ser enfrentados com as ferramentas disponíveis.

«Não dormi esta noite pensando nas videoaulas» [mensagem típica de ansiedade do ensino a distância]

A solução, no entanto, não é não fazer nada, mas adotar posições razoáveis. Por exemplo, lembremos de manter nosso senso de frustração sob controle: se não obtivermos o feedback que esperamos, é porque não há condições mínimas para que isso aconteça.

Evitemos responder a essa frustração dizendo «Trabalharei ainda mais», como o cavalo Boxer em A revolução dos bichos: responder a mensagens e enviar e-mails a cada hora, estar sempre disponível e geralmente aumentar nossa produtividade além do limite não é a solução, mas a base para novos problemas.

O almoço de um docente aos tempos do Covid-19.

A ministra pediu um aumento nos esforços do corpo docente. É a mensagem perfeita para um expoente de um governo ultraliberal em perfeita sintonia com governos anteriores, mas esse método não é saudável, nem para nós nem para os e as estudantes que estão aprendendo um método de trabalho maluco.

Isso não significa se afastar ou fingir que tudo está igual. Ao invés de avançar com o programa, diminuamos a velocidade, ao invés de de fornecer quilos de páginas para ler, procuremos materiais que criem os links entre o que deve ser estudado e o que está acontecendo.

Claro, não vamos fingir que a situação é normal. Também porque, deste ponto de vista, «não queremos voltar à normalidade porque a normalidade era o problema».

 

6. Avaliar e punir

«Um bom professor sabe como planejar testes à prova de cópia ou quase, mesmo remotamente. E neste momento é importante recompensar aqueles que se comprometem e punir aqueles que não se comprometem, porque as crianças também devem assumir suas responsabilidades em relação ao país.»

[De uma reunião on-line entre professores.]

A proposta que, após uma boa elaboração coletiva, gostaríamos de deixar explícita é a seguinte: daqui até o final do ano, paremos de avaliar.

Escrevemos em um comunicado recentemente publicado: há algum tempo a escola entrou em um beco sem saída ideológico que fez da avaliação seu ponto principal. Acordemos e lembremos que a avaliação não é o objetivo do ensino.

«Não sei como avaliar erros de ortografia de quem escreve no computador. E também, como podemos impedir que eles copiem?» [Trecho de uma conversa entre professores]

«O professor de matemática decidiu filmá-los durante os testes orais, para que fique claro para onde eles olham enquanto falam». [Trecho de um chat entre professores]

Que avaliações esperamos fazer? Com quais critérios?

As alunas e os alunos que deveríamos avaliar estão fechados em casa, geralmente recebem aulas problemáticas por causa da conexão, por causa do humor do professor, por causa do estresse a que todos e todas estamos sujeitos. E, mais uma vez, essa é a melhor das hipóteses, porque em muitos casos a pessoa a ser avaliada é pressionada numa casa lotada de pessoas que - depois de um mês de isolamento - não aguenta mais, participa de aulas através do seu telefone celular e talvez usa o crédito do próprio plano porque não possui conexão wifi ilimitada.

«Eu estou avaliando. Caso contrário, não saberia como recuperar meus alunos.» [De uma discussão durante uma assembléia da Rete Bessa]

O fato da avaliação poder ser a ferramenta de chantagem que usamos para manter viva a atenção das e dos estudantes deve nos alarmar. Isso significa que mesmo aqueles que se consideram imunes ou críticos em relação aos dogmas da escola neoliberal não são imunes e que, para nos salvar, precisamos nos aprofundar nos horrores do sistema atual. Agora, mais do que nunca, é necessário reverter a lógica à qual estamos acostumados e aproveitar a oportunidade para repensar nossos métodos durante e além dessa emergência. Como as e os estudantes podem voltar a ser sujeitos? Como promover suas qualidades? Como permitir que eles superem a dificuldade? Como valorizar o trabalho em equipe?

Um exemplo de avaliação.

Referindo-nos à ministra em sua entrevista coletiva em 6 de abril: a média 6 para aprovação (o 6 político)[9] não é velha, o que é velho - porque está ligado à sociedade neoliberal que gostaríamos de relegar ao passado - é pensar que o processo educacional deva ser inserido em uma lógica pseudo-meritocrática independentemente do ambiente educacional e de aprendizagem, onde os padrões são estabelecidos a priori e atuam em um sistema de habilidades pré-empacotadas que envolvem créditos ou dívidas.

7. Para um manual de autodefesa

Ao interagir com a oficialidade, estamos completamente dentro da distopia.

Há um mês, o diretor envia comunicados, nos quais achou bom dar instruções como "passo um", "passo dois", "passo três", as quais não posso evitar ler começando primeiramente com o clamor: "Italiaaaanooooosss", emitido com uma vozinha nasal e alegre[10]:

«Estamos enfrentando uma" emergência nacional "que muda não apenas as formas e os horários do ensino, mas também os perfis da instituição escolar, a configuração do professor e as expectativas dos interessados. O termo "sucesso formativo", nos "tempos do coronavírus", torna-se, portanto, sinônimo de

- implementação de interesse

- implementação da participação

- implementação do compromisso

- expressão de responsabilidade e senso cívico

Peço, portanto, que vocês expressem o grau máximo de flexibilidade possível nesta fase de emergência... flexibilidade que não se traduz apenas em "ter aulas em um horário e local diferentes", mas na capacidade de dar um significado diferente às práticas comuns. Então continuem nessa linha. [...] será minha preocupação capitalizar seu compromisso e aprimorar seu trabalho com os fundos de bônus. No final de semana, depois de ouvir o animador digital, enviarei as novas diretrizes para o ensino a distância a ser praticado na próxima semana, [...] assim continuem conectados...»

Usando os Games, o Presidente de Panem mantém um sistema desde há 75 anos. Nos momentos de dificuldade convida os cidadãos a se manter unidos.

Em um contexto em que a emergência é tratada com estoques de DPCM (Decreti della Presidenza del Consiglio di Ministri, Decretos da Presidência do Conselho dos Ministros, NdR) que ultrapassam o Parlamento, a estrutura das escolas se torna mais do que nunca verticalizada. Às vezes, a tomada de decisão da gerência pode parecer mais eficiente no tratamento de emergências, mas essas situações são completamente circunscritas e instáveis.

O gestor, fortalecido por uma autoridade reconhecida pela reforma Renzi[11], pode ser transformado em um déspota que tenta impor medidas e métodos. Aqui também Cattive Maestre explica bem. Da forma como a escola está estruturada, essa autoridade funciona também de forma negativa, ou seja, nos casos em que a gestão não fornece nenhuma orientação deixando espaço aberto para a auto-organização do corpo docente.

Em teoria, esse último aspecto poderia ser até positivo, mas, ao colocar esse princípio na realidade de uma sociedade poluída por décadas de discursos ferozes, as e os colegas ao mesmo tempo correm o risco de se transformar nos piores inimigos: Você é do apoio pedagógico às alunas e alunos com dificuldade de aprendizado? Você não tem o direito de falar. Você é substituto? Deixa falar os que têm vínculo efetivo. Você é jovem? O que você sabe!

Enquanto esperamos que alguém produza um manual de autodefesa do apocalipse, nos permitimos alguns conselhos imediatos:

As lutas para a educação no início dos anos 2010: o «Book Bloc».

«Não é hora de polêmica.»

Entre as muitas coisas estúpidas lidas no bate-papo dos professores do último mês e meio, essa frase não está muito presente. É um bom sinal.

Este é precisamente o momento de polemizar. Alguns dias atrás, o ex-primeiro ministro de um governo que não foi atingido por um asteróide - apesar dos melhores votos[12] - disse em uma transmissão de televisão que o ensino online é uma das coisas positivas que nos deixará esta emergência.

E provavelmente será assim. De fato, como já escrevemos em um texto que serviu de base para escrever este artigo, já é assim.

Por como está sendo organizado, o sistema de emergência ativado prevê uma multiplicação do trabalho, um enfraquecimento daqueles que já são mais frágeis, maior controle vertical, uma fragmentação de corpos coletivos que dificulta os caminhos educacionais e favorece o individualismo. Devemos impedir que esse programa de emergência se torne estável, como aconteceu em outras emergências.

Ao mesmo tempo, a reflexão cuidadosa sobre o ensino a distância deve acompanhar a reflexão sobre a estrutura em que as dificuldades atuais são enxertadas: como no caso da saúde, a escola também precisa de um refinanciamento substancial se não queremos que todo o sistema afunde, como no caso da saúde, a questão da precariedade deve ser tratada através da estabilização do pessoal, e os "sujeitos em risco", ou seja, as e os estudantes que precisam de pessoal de apoio e cursos de italiano L2, devem ser salvaguardados por meio da injeção de ferramentas e pessoal. Qualquer forma de ensino, online ou não, qualquer escola do futuro deve começar a partir daqui.

Os anticorpos contra esta distopia devem ser desenvolvidos imediatamente.

By any means necessary.

Organicemonos! Fachada do instituto Aldini Valeriani Siriani, bairro Navile, Bologna. Credits: Michele Lapini / Cheap.

Notas

  1. ^ Título original: “Brodo di DAD. Appunti per non farsi bollire a scuola durante e dopo l’emergenza coronavirus”. Nota do Tradutor: a tradução do título para a língua portuguesa foi adaptada para compreensão do leitor brasileiro. Texto original aqui.
  2. ^ https://retebessa.noblogs.org/
  3. ^ O encontro marcado em um supermercado é decorrente da limitação de circulação de pessoas devido à pandemia. As consideradas rígidas medidas de isolamento social se comparadas às brasileiras, permitiam que as pessoas saíssem de casa apenas para fazer comprar essenciais e com documentos de autorização específica, sob penalidade de fiscalizaçao permanente e altas multas em caso de infração.
  4. ^ Hashtag propaganda do Ministério da Educação italiano, buscando incentivar o Ensino à Distância durante o isolamento social.
  5. ^ Devido à pandemia não havia a assinatura de novos contratos com os professores eventuais. Caso o contrato de um professor ou professora terminasse antes do fim do Lockdown, não haveria um novo contrato disponível, colocando-o na situação de desemprego.
  6. ^ Em português o nome do programa seria “A hora do buraco” e a radio “Onda Vermelha”, sendo esta uma rádio romana que surgiu nos anos 1970, no âmbito de uma efervescência de novas “rádios livres”, e dentro do campo político da chamada Autonomia Operária.
  7. ^ Refere-se a uma frase frequente da direita italiana em oposição à acolhida de imigrantes, que se significa que seria melhor “ajudar” os imigrantes, sobretudo africanos, em seus países de origem ao invés de deixa-los ir à Itália. Claramente, são frases puramente retóricas, porque os voluntários das ONGs na África são repetidamente perseguidos por essa mesma direita.
  8. ^ Jornal empresarial italiano, semelhante ao Valor Econômico no Brasil.
  9. ^ A nota 6 é a média mínima para o aluno ser aprovado no sistema escolar italiano. Em 1968 o movimento estudiantil reivindicava o “6 político” para todos, como crítica à lógica meritocrática e classista da avaliação.
  10. ^ Referência a Benito Mussolini.
  11. ^ Reforma “Buona Scuola”, de 2016, do governo de Matteo Renzi.
  12. ^ Refere-se ao governo de Enrico Letta (2013-2014) e a uma campanha irônica no Twitter lançada pelo coletivo de escritores Wu Ming, que clamava para que esse governo fosse derrotado pela chegada de um asteróide.